Vamos falar sobre a endometriose?
Gosto de pensar que podemos ter um espaço aberto para falarmos sobre diversos temas. Com uma xícara de café na mão, em um ambiente acolhedor, podemos conversar sem medo de julgamentos, sem medo de sermos felizes. Na verdade, um espaço no qual nos sintamos tranquilas para expormos nossas dores, angústias, medos, sonhos, tristezas.
Quando comecei a escrever sobre a endometriose aqui no Blog da Acalentar, meu intuito era explicar sobre a doença, trazer as novidades do meio acadêmico e, de alguma forma, poder ajudar as mulheres com endometriose. Para mim, falar sobre uma doença como essa, requer cautela e muita empatia. Pois nós não sabemos o que se passa dentro de cada mulher portadora desta doença.
~ Como acolher a quem precisa, se não sei realmente como ela está?
Para falarmos sobre, precisamos entender. Para entender, precisamos ter um mínimo de conhecimento. Primeiro, precisamos entender o que é a endometriose. E depois, compreender o que a doença faz dentro das mulheres. Com esses conhecimentos, quem sabe, podemos criar um espaço de discussão acolhedor para elas.
Por isso, hoje convido a todos a falar sobre a endometriose!
O que é endometriose?
A endometriose é uma doença inflamatória. Isso significa que é uma doença que causa dor. Aí você deve pensar, ué, as doenças causam dor, não é mesmo? Bom, a verdade é que nem todas ocasionam dor. Por exemplo, hipertensão arterial não provoca dores nas pessoas, mas é uma doença. Quando falamos que a endometriose é uma doença inflamatória que causa dor, não podemos generalizar com outras doenças, pois a dor da endometriose é um dos sintomas que mais causa incapacidade nas pacientes.
Na medicina, a endometriose é classifica como um processo inflamatório local, que pode progredir para outras partes do corpo, e passa a ser uma doença de caráter sistêmico (está em todo lugar). Inicialmente, ela começa em um único lugar do corpo, mas ela avança de forma agressiva, atingindo várias regiões do corpo. Essa discussão, sobre se é sistêmica ou não, é assunto do meio científico, em que vários estudos tentam descobrir se, de fato, a endometriose sempre foi uma doença sistêmica ou não.
Mas de onde surge essa inflamação?
Sabemos que ela causa uma inflamação, mas qual o motivo?
A característica dessa doença é o crescimento de tecido similar ao endométrio (tecido que reveste no útero) em regiões do corpo que não seja o útero. Ou seja, cresce um tecido similar ao que temos no útero, em um lugar que não deveria existir. Um tecido que deveria estar no útero, e está em outro lugar, pode gerar um desconforto, não é mesmo?
Ainda não se sabe o motivo de surgir esse tipo de tecido em outras regiões do corpo, mas sabemos que fatores hormonais podem influenciar.
É comum?
Podemos dizer que a endometriose tem uma alta prevalência, afetando 5 a 10% das mulheres em idade reprodutiva. É uma doença que possui diversos impactos negativos na qualidade de vida. Incapacitante.
Um grande problema da doença é o diagnóstico. Normalmente, há grandes dificuldades em realizar um diagnóstico podendo o mesmo, ser feito até 11 anos após o surgimento dos primeiros sintomas. Entre os sinais, podemos citar:
Alterações metabólicas e hepáticas;
Alterações neurológicas que aumentam a sensibilidade a dor;
Ansiedade e depressão;
Inflamação sistêmica;
Tendência a desenvolver doenças autoimunes.
Quando falamos em tratamento
Atualmente, existem duas opções de tratamento: o medicamentoso e o cirúrgico. A terapia medicamentosa é a primeira escolha, com a combinação de contraceptivos orais e medicamentos anti-inflamatórios não esteroidais. Entretanto, 25 a 33% das pacientes não respondem a esse tratamento, sendo necessário outras terapias.
A escolha do processo cirúrgico leva em consideração não apenas o alívio da dor, mas também tratar a infertilidade relacionada a endometriose. Como terceira linha de tratamento, é realizado a cirurgia seguida de terapia medicamentosa. Uma tentativa em reduzir a possibilidade do retorno da doença e efeitos sistêmicos.
Doença inflamatória sistêmica?
Um estudo publicado em 2022, trouxe mais evidências de que a endometriose é uma doença inflamatória sistêmica. Para encontrarem essas evidências, os cientistas investigaram as bases da endometriose
As bases celulares e moleculares
O grupo de investigadores procurou por assinaturas genéticas da endometriose. Essas assinaturas são como um conjunto de informações de um gene ou vários genes relacionados a uma célula ou tecido. Ao descobrirmos as assinaturas envolvidas com a endometriose, podemos compreender melhor a doença.
Nesse artigo, os pesquisadores perceberam a existência de uma assinatura genética elevada de células imunológicas em pacientes com endometriose, células de linhagens mieloide (como monócitos, neutrófilos e mastócitos) e de linhagem de linfócitos (células T CD4 e células T CD8). Esses dados evidenciam uma alteração da imunidade, nas células imunológicas, e que pode estar relacionada com o desenvolvimento e gravidade da doença.
Indo além, o grupo fez uma análise de interação entre os genes que podem estar relacionados tanto com a endometriose quanto com as doenças imunológicas. Os dados revelaram que essas doenças compartilham diversos genes.
Uma célula que ganhou destaque nas análises foi o neutrófilo. O neutrófilo é uma célula que possui uma plasticidade (ou seja, consegue se adaptar) e liberam grânulos para destruir micro-organismos invasores ou células potencialmente perigosas. A liberação dos grânulos é chamada de degranulação, e os genes envolvidos com essa degranulação também foram relacionados com a endometriose.
Equilíbrio é chave
Os sistemas do nosso organismo (imune, endócrino, nervoso e reprodutivo) são conversados de forma a manter a homeostase, ou equilíbrio entre os sistemas. Isso significa que temos genes que permaneceram conservados por muitos e muitos anos.
Se algum sistema falhar em coordenar a sua função, uma inflamação sistêmica pode ser resultado dessa falha. Se a inflamação (e a falha) persistir, desenvolvemos uma doença crônica (inflamação crônica).
Nesse contexto, os pesquisadores encontraram genes relacionados a endometriose e que também estão presentes em outro sistema, ou seja, a endometriose pode estar relacionada com o desequilíbrio dos sistemas.
O que esse estudo trouxe de novidade?
Todas essas descobertas genômicas ajudam a entender sob outra perspectiva a endometriose, e a desenvolver estratégias para tratar a doença.
Percebam que a endometriose é uma doença complexa, e ainda sem respostas para as causas. Como um quebra cabeça, precisamos juntar as peças até formarmos a imagem total e poder entender tudo que existe por detrás dessa complexidade.
A nós, cabe falar sobre a doença. Discutir, conversar, escutar, aprender, compreender. Precisamos falar mais abertamente, e tirar a endometriose da invisibilidade. É falando sobre as causas, diagnóstico, tratamento, avanços na pesquisa, dores das pacientes e acolhimento, que poderemos, de fato, ajudar a quem precisa.
Por isso, convido a todos: vamos falar sobre a endometriose!
Artigo escrito por Lavínia Romera
Referências:Foto de Bewakoof.com Official na Unsplash Bao C, Wang H and Fang H (2022) Genomic Evidence Supports the Recognition of Endometriosis as an Inflammatory Systemic Disease and Reveals Disease-Specific Therapeutic Potentials of Targeting Neutrophil Degranulation. Front. Immunol. 13:758440. doi: 10.3389/fimmu.2022.758440