Uma planta e uma doença: cannabis e a endometriose

Uma doença inflamatória crônica que afeta 1 em cada 10 mulheres é a endometriose. Silenciosa, emerge aos poucos crescendo até impactar diretamente a vida das portadoras.

A endometriose é ocasionada pelo crescimento de tecido similar ao útero, fora da cavidade uterina, e capaz de desenvolver-se em órgãos da região pélvica. Esse crescimento provoca vários sintomas, que incluem dor pélvica, infertilidade, dor no período menstrual ou durante o sexo. Além disso, esses sintomas podem colaborar com o desenvolvimento de ansiedade, depressão e redução da qualidade de vida.

Existem diversos tratamentos para a endometriose, como terapias hormonais e cirurgia. Entretanto, ambos têm efeito limitado e podem ocasionar muitos efeitos adversos. Por exemplo, uma paciente que se submete a cirurgia pode sofrer de dores pós cirúrgica, e pior, recorrência da endometriose. Como resultado, as pacientes procuram outras formas de aliviar a dor, que podem incluir alterações na dieta e exercícios físicos. Mas, muitas vezes, não é o suficiente para esse alívio.

É o momento que a terapia medicamentosa para alívio da dor é introduzida.

Nesse contexto, uma substância que vem sendo investigada é a Cannabis. Apesar do consumo estar relacionado com potenciais efeitos adversos e de dependência, ela demonstra um efeito analgésico poderoso. Mas, ainda não sabemos os efeitos na endometriose.

Para entendermos e compreendermos esses efeitos, é necessário a execução de estudos científicos. Para isso, é necessário um modelo similar ao que acontece nas pacientes, momento em que os modelos animais são utilizados. Acontece, que até 2020 não havia modelos animais estabelecidos e padronizado para os estudos.

Foi quando Escudero-Lara e colaboradores criaram um modelo que mimetiza as condições da endometriose humana: dor pélvica, ansiedade e distúrbios na memória.

Nesse estudo, os animais foram tratados com doses de THC (tetrahidrocannabinol), que é o principal componente da Cannabis relacionado a potencial de analgesia.

O THC diminui a dor pélvica e os distúrbios cognitivos nesses animais tratados, entretanto, não teve efeitos na ansiedade. Um dos achados mais interessantes foi a observação do menor crescimento do tecido endometrial nesses animais tratados, um indício de que o THC possa ter algum efeito inibitório no desenvolvimento da endometriose.

Para os pesquisadores, esses resultados indicam que o THC pode ser um grande aliado no tratamento das pacientes.

A ciência por detrás

A Cannabis sativa é uma planta composta por vários componentes, e sabemos que pelo menos 60 deles possuem atividade farmacológicas capazes de ativar os receptores de canabinóides nas nossas células. Os principais compostos encontrados são o THC ou tetrahidrocannabinol e cannabidiol (CBD).

O THC (D9-tetrahidrocannabinol é o principal constituinte psicoativo da Cannabis sativa, e muitos estudos em modelos animais e clínicos sugerem sua eficácia em aliviar dores crônicas. Ele é conhecido por causar os efeitos psicoativos da planta, incluindo a euforia e psicose.

O CBD não é considerado um composto psicoativo, mas possui efeitos ansiolíticos e algumas propriedades antipsicóticas.

O efeito medicinal da Cannabis depende das concentrações de THC e CBD. Por exemplo, a cannabis recreativa possui altas concentrações de THC, e menos CBD. Entretanto, a cannabis medicinal possui, normalmente, mais concentrações de CBD para limitar os efeitos psicoativos do THC.

Nossas células possuem receptores endocanabinoides

Há os receptores canabinóides tipo 1 (CB1) e do tipo 2 (CB2).

O CB1 é localizado no sistema nervoso central e periférico, especificamente nas regiões do cérebro envolvidas na modulação da dor. O CB2 é localizado mais distante do sistema nervoso central, nos sistemas imunológicos e hematológicos, e estão relacionados com a diminuição da dor.

O THC é capaz de ativar ambos os receptores e inibir a função do glutamato. Esse desbalanço altera as funções conhecidas como dopaminérgicas, e afeta as sinalizações envolvidas com a dor.

O estudo

Esse trabalho, com o modelo animal de endometriose, trouxe resultados importantes para entendermos a possibilidade do uso de cannabis para efeitos analgésicos. O grupo mostrou que o THC é capaz de diminuir a hipersensibilidade à dor, induzindo uma tolerância a dor.

O THC, também, preveniu algumas disfunções cognitivas, mas sem modificar a ansiedade. Talvez isso esteja relacionado com a dose investigada no estudo.

Um dos achados mais fascinante foi que o THC mostrou uma eficácia ao limitar o desenvolvimento do tecido endometrial em outras regiões do animal, o que indica um efeito modificador na doença.

Esses resultados ajudaram a iniciar alguns estudos clínicos (por exemplo: Clinical Trial NCT03875261) para investigar o papel desse composto na terapia da encometriose.

É com os estudos que poderemos entender o papel da cannabis no auxílio ao tratamento da endometriose. Os indícios são bons. Agora resta-nos esperar que as evidências científicas mostrem esse caminho.

Para as pacientes, um acalento de que novos e bons tratamentos virão.

 

*É preciso lembrar que o THC tem efeitos adversos importantes, que incluem déficits cognitivos e ansiedade.

 

 Artigo escrito por Lavínia Romera

 

Referências:Alejandra Escudero-Lara, Josep Argerich, David Cabañero, Rafael Maldonado (2020) Disease-modifying effects of natural Δ9-tetrahydrocannabinol in endometriosis-associated pain eLife 9:e50356 https://doi.org/10.7554/eLife.50356King, K.M., Myers, A.M., Soroka-Monzo, A.J., Tuma, R.F., Tallarida, R.J., Walker, E.A., Ward, S.J., 2017. Single and combined effects of Δ9 -tetrahydrocannabinol and cannabidiol in a mouse model of chemotherapy-induced neuropathic pain. British Journal of Pharmacology 174, 2832–2841.. doi:10.1111/bph.13887Imagem: Unsplash por CBD-Infos